segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Enfim, despeço-me de Jean Valjean

Sobre Os Miseráveis, de Victor Hugo. 
(trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: Cosac Naify, 2002. Vol. I e II)

     Com minha mania de devorar livros, em Os Miseráveis tive de ser um pouco mais comedida. Em primeiro lugar, porque dois volumes com mais de 500 páginas cada não se leem assim, num repente. Depois, porque eu realmente saboreei cada trecho.
      Claro que algumas páginas de dissertações, muitas vezes, um tanto quanto moralistas do autor, acabavam por torná-lo um pouco cansativo em alguns momentos. Repito, apenas em alguns momentos.
    Toda história do protagonista, Jean Valjean, condenado a expiar por toda a sua vida por um "crime inofensivo", sem com isso, deixar de praticar o bem, corre paralela aos acontecimentos históricos de uma França convulsionada por várias revoltas e lutas de barricadas no período compreendido entre 1810 e 1833.
     Os Miseráveis não é um clássico por acaso. São páginas e páginas que sublinhei, que marquei, pois contém a atemporalidade que marca todo clássico que se preze, são retratos de uma época que bem podiam representar o século XIX como os dia atuais.
     Ademais, passagens belíssimas de conflitos e perturbações, como o inspetor Javert, exemplo de extremo rigor e cegueira perante a lei, que, ao se ver diante do inexplicável ato de bondade de Jean Valjean ao salvar-lhe a vida, pela primeira vez é "constrangido a pensar". O homem simples e cumpridor dos deveres e códigos da Lei sucumbe diante da necessidade humana de raciocinar: "sua suprema angústia era o desaparecimento da certeza".
       Essa passagem, por si só, vale o livro todo. É de uma delicadeza e beleza sem igual.
         "... Não conseguia mais compreender a si mesmo. Não estava mais seguro de ser o mesmo de antes. As razões desse comportamento lhe escapavam; restava-lhe somente a vertigem. Até aquele momento ele vivera da fé cega que se origina da probidade tenebrosa; essa fé o abandonara, essa probidade faltava-lhe agora. Todas as suas crenças se dissipavam. Verdades que não queriam conhecer obcecavam-no inexoravelmente. Agora devia ser outro homem. Ele sofria as estranhas dores de uma consciência bruscamente operada de catarata. Via o que lhe repugnava ver. Sentia-se vazio, inútil, deslocado de sua vida passada, destituído, dissolvido. A autoridade morrera-lhe no íntimo. Ele não tinha mais razão de ser. Situação terrível! Estar comovido!
            Ser granito e duvidar! Ser a estátua do Castigo, fundida numa só peça nos moldes da lei, e perceber subitamente que se tem sob um peito de bronze uma coisa absurda e desobediente que se assemelha quase a um coração! Chegar a retribuir o bem com o bem, embora tenha dito a si mesmo, até aquele dia que esse bem era o mal! Ser cão de guarda e lamber! Ser gelo, e fundir-se! Ser a tenaz e transformar-se em mão! Sentir de repente os dedos que se abrem soltando a presa! É espantoso! O homem projétil, não sabendo mais que caminho seguir, recuou!" (pp. 653-654 - vol.II)
        Como não se identificar, nesse momento, com aquele que seria o anti-herói da história? Quem, em algum momento de sua vida não sentiu suas certezas desmoronarem? E não é esse o momento sublime da condição humana? O momento em que se morde a maçã do conhecimento do bem e do mal! O momento em se abrem as cortinas do conhecimento e nos descobrimos capazes de pensar! O momento em que se sai da caverna! O momento supremo, de extrema angústia, em que se descobre falível, imperfeito, e por conseguinte belo e humano!
         
      O final, digamos que quase previsível (não se poderia esperar outro fim para Jean Valjean), me verteu lágrimas. E não foram aquelas lágrimas pelo triste fim do protagonista, mas as lágrimas de despedida. Estou me sentindo orfã... Eu sei que geralmente choro quando termino um livro, mas é que fiquei tanto tempo nessa leitura que não sei o que vou fazer daqui pra frente... E não é que eu chore só porque sou uma manteiga derretida. Choro mesmo que os fins sejam "felizes para sempre". (Quer dizer, quando eu terminei Cien años de soledad, fiquei em estado de choque, mas é história para outro post.) Bom, eu sei que nenhum outro livro vai ocupar o lugar deste, mas preciso de outra leitura. Urgente!


 Os Miseráveis - Victor Hugo